sábado, 23 de junho de 2007

Objetos relevantes - Parte I

"Veja, Lorena, aqui na mesa este anjinho vale tanto quanto o peso de papel sem papel ou aquele cinzeiro sem cinza, quer dizer, não tem sentido nenhum. Quando olhamos para as coisas, quando tocamos nelas é que começam a viver como nós, muito mais importantes que nós, porque continuam." (Lygia Fagundes Telles)


Para muitos era só uma caneta. De fato, era uma caneta, mas para a pessoa que a carregava no bolso da camisa...Ah, era muito mais do que isso! Era uma espécie de arma. Não que ele a usasse para fins violentos, mas era como empunhar uma espada, dava sensação de poder e de segurança. Alguém trazia uma papel e lá ia a canetinha pro seu trabalho de marcar, de escrever ou de assinar. Tirava a caneta do bolso da camisa com a habilidade de um cowboy do faroeste que saca o seu revólver. Era um escritor e, como tal, venerava sua caneta, pois era um passaporte, a mediação entre o seu mundo interior e o exterior.
Mal acabava a tinta e ele já tinha outra, igualzinha à primeira, esperando para ser usada. Mesmo modelo, mesma cor, mesmo lugar no bolso da camisa. Ia à biblioteca e ao invés de pegar a caneta do balcão, pegava a sua. Ia assinar o cheque e ao invés de aceitar a caneta que lhe ofereciam, dizia "não, muito obrigado" e assinava com a sua. Só ela, só com aquela caneta escrevia. Como se ela tivesse algum tipo de poder para acumular toda a informação que havia traçado ou captar a essência da pessoa que a tomava em mãos.
Acordou naquela manhã e a caneta não estava no bolso da camisa que usara no dia anterior. Precisava terminar um relatório, não podia fazê-lo sem a caneta, não podia ler sem tê-la em mãos, mesmo que não fosse anotar nada...Correu até a papelaria mais próxima, mas eles não tinham aquele modelo. A atendente que lhe mostrou muitas outras canetas e até lapiseiras, lápis e marcadores, não entendia que outra coisa não poderia substituir. No resto do dia não escreveu uma linha, uma palavra sequer. A caneta perdida em algum lugar, agora não era mais um passaporte, era só uma caneta e ele, já não era um escritor.

domingo, 10 de junho de 2007

Projeção

Escuro. Cortinas negras, sem luz, sem vida, sem nada que se pudesse ver. E o sono que não vinha. Geralmente espero o sono chegar com os olhos fechados, mas nesse dia abri meus olhos para a escuridão. O quarto, que foi meu por toda vida, e ainda hoje era meu.

Quando foi que eu morri? Quando que eu não fui eu? Estive sonhando esse tempo todo, só agora não tenho sono pra sonhar, e espero ele chegar. Geralmente espero com os olhos fechados, mas hoje abri meus olhos para a escuridão. Que mágica é a noite. Hoje estou eu, ou estive todo esse tempo, no sonho, na vida. Gritei na noite, mas não tive mais pesadelos, por outro lado também não tive mais sonhos, sem sofrimento não há alegria eu sei. O meu dom de pressentir, de saber antes, de lembrar o que já foi. Eu vi, eu pressenti e me senti amaldiçoada, mesmo sendo portadora de uma espécie de dom. Por um longo tempo estive só na noite, quando ninguém mais estava, e eu vi o que ninguém vê. Vi a noite ganhar vida. E me vi morrer. As sombras que tomavam formas monstruosas, não me mexi. Não tinha sono. Geralmente espero o sono chegar com os olhos fechados, mas nesse dia abri meus olhos para a escuridão, e vi tudo que não existe. O lado esquerdo e o direito, e mais um outro lado. O bem e o mal e mais uma outra força. A escuridão sem luz, foi plena, na noite ou no dia, mas eu não tinha sono, e não esperava ele chegar com os olhos fechados como geralmente faço, agora abro meus olhos pra escuridão. Pensei estar sonhando, mas estava morta; pensei acordar, mas ainda sonhava; e quando acordei não estava mais viva. E o quarto. De como eu me lembrava de tudo que aconteceu. E como imaginava o que ainda estava para acontecer, mas não ia, pois não tinha sono e geralmente o espero chegar com os olhos fechados, mas ontem abri os meus olhos para a escuridão. E nada vi, e tudo vi.